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NÃO TEM REMÉDIO.

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Farmacêuticas movem máquina de processos para barrar genéricos de medicamentos para câncer, diabetes e HIV.


Medicamentos mais baratos levarão anos para chegar às prateleiras, caso farmacêuticas consigam burlar decisão do STF sobre patentes. Ilustração: Rodrigo Bento/Intercept Brasil


Nayara Felizardo21 de ago de 2023, 06h02


Em colaboração com: 


Em 2021, o SUS incorporou um novo remédio para o tratamento de mulheres com determinados tipos de câncer de mama metastático – Ibrance é seu nome comercial. Com o princípio ativo palbociclibe, o medicamento dá mais qualidade de vida às pacientes porque é menos agressivo que a quimioterapia tradicional. As mulheres tomam o comprimido em casa diariamente – ou deveriam tomar.

Embora esteja na lista de medicamentos disponibilizados pelo SUS, na prática, o remédio não é comprado pelos hospitais oncológicos devido ao alto custo. O valor de uma caixa com 21 comprimidos pode chegar a mais de R$ 15 mil nas farmácias. Segundo nota da Pfizer, o preço submetido para o SUS é de R$ 5,3 mil por caixa no primeiro ano e cairia ao longo de cinco anos, até chegar a R$ 3,8 mil. A empresa é dona da farmacêutica Warner-Lambert, que patenteou o remédio. Se depender delas, ainda vai levar ao menos nove anos para um genérico do Ibrance surgir no mercado brasileiro.

Por aqui, a indústria farmacêutica estrangeira está movimentando uma máquina de processos judiciais para atrasar a produção de genéricos de quase 50 remédios. Como o Ibrance, um quarto desses medicamentos é usado para tratar câncer. Há também antidepressivos e remédios para prevenção e tratamento de HIV, além dos que tratam diabetes, esclerose múltipla, TDAH e a rara, genética e hereditária Doença de Gaucher.

As farmacêuticas tentam burlar a decisão de 2021 do Supremo Tribunal Federal, que limita a 20 anos a duração de patentes no Brasil. O prazo determina por quanto tempo uma empresa tem exclusividade sobre uma tecnologia ou um princípio ativo. Por isso, impede a produção de medicamentos genéricos. Já são cerca de 50 ações movidas na justiça federal em Brasília e no próprio STF buscando estender esse privilégio. No caso do princípio ativo do Ibrance, a patente foi extinta em janeiro deste ano – mas a farmacêutica busca estender o prazo até 2032.

O levantamento das ações foi feito pelo Grupo Farma Brasil, associação que reúne 12 grandes farmacêuticas nacionais. Elas se beneficiariam da expiração do prazo de patentes porque passariam a poder utilizar os princípios ativos em pesquisas e na produção de medicamentos genéricos – segundo dados de 2018 do Relatório de Atividades do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, o INPI, 80% dos depositantes de patentes de invenção no Brasil tinham origem estrangeira.
Tipos de doenças tratadas pelos remédios patenteados

Tratamento - Quantidade de medicamentos.

Câncer 12
Diabetes 9
Imunossupressores 4
Anti-inflamatório e anti-reumático 2
Anti-hipertensivo 2
Antidepressivo 2
HIV 2
Esclerose múltipla 1
Insuficiência cardíaca 1
AVC 1

As patentes da maioria dos medicamentos alvos das ações judiciais já venceram ou vencem neste ano. É o caso do remédio de nome comercial Nexavar, patenteado pela Bayer e produzido com o ativo tosilato de sorafenibe. Usado para tratar um tipo específico de câncer nos rins, uma caixa de 60 comprimidos custa cerca de R$ 8 mil. Considerando a decisão do STF, a Bayer perdeu a patente em 2020, mas ela busca na justiça sua restauração com prazo até 2024. O pedido ainda não foi julgado.

Farmacêuticas que moveram mais de uma ação.


Farmacêutica - Número de ações que move na justiça:

Novo Nordisk 6
Novartis 4
Pfizer 3
Johnson & Johnson 2
Bayer 2
Astrazeneca 2
Janssen 2
Wyeth 2
Bristol-Myers Squibb 2
Astellas Pharma 2
Merck Sharp & Dohme 2

Outro caso é o da Astellas Pharma, que perdeu em 2022 a patente de um remédio para incontinência urinária com o ativo mirabegrona, o Myrbetric, que custa cerca de R$ 260 a caixa com 30 comprimidos. A farmacêutica quer manter a patente até 2033, mas dois pedidos de liminar já foram negados em primeira instância pela 21ª Vara Federal do Distrito Federal.

Por meio da assessoria de imprensa, a Bayer argumentou que “investe cerca de 15% de seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos”. Por isso, defende que um tempo razoável de comercialização da invenção patenteada é fundamental para atingir “objetivos econômicos e sociais”. Em relação aos processos, disse que “busca, com argumentos jurídicos legítimos, uma resposta jurisdicional para questões que ainda não estão pacificadas nos tribunais”. Já a Astellas informou que não comenta casos judiciais em andamento e aguardará a decisão do Judiciário.

As patentes de ao menos 14 medicamentos expiram entre 2024 e 2031, mas as farmacêuticas já estão se antecipando. A Novo Nordisk, por exemplo, queria ganhar mais 12 anos de uso exclusivo da semaglutida, princípio usado no remédio antidiabético de nome comercial Ozempic. É o maior prazo adicional de vigência solicitado na justiça. A patente venceria em 2024, mas a empresa busca estender até 2036. O pedido foi julgado improcedente nas duas instâncias pela 14ª Vara Federal do Distrito Federal. Ainda cabem recursos. A caixa do remédio pode chegar a mais de R$ 1.200 atualmente.

A Novo Nordisk é a farmacêutica que moveu o maior número de processos até agora – seis. Procurada, justificou por meio da assessoria de imprensa que “busca a restituição ─ em medida exatamente igual, em natureza e tamanho ─ daquilo que lhe foi extraído pela inércia do INPI durante a fase de análise e aprovação das patentes objeto das ações judiciais”. A empresa alegou ainda que “não existe solicitação de extensão de patente” e que só lança um produto no mercado a partir da concessão formal. Por isso, “não usufrui nem usufruirá dos 20 anos de proteção patentária prevista em lei, devido aos atrasos históricos do INPI na análise dos pedidos”.

Entre as empresas que também entraram com as ações estão Pfizer, Johnson & Johnson, Janssen e Bayer. Elas alegam, em geral, o mesmo que a Novo Nordisk – o INPI teria atrasado de forma injustificada o processo de análise dos pedidos de patente. Com isso, estaria provocando prejuízos por reduzir o tempo para as farmacêuticas usufruírem da exclusividade. O problema seria revertido com a concessão de um prazo extra – justamente o que a decisão do STF julgou inconstitucional no parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Intelectual, a LPI.

Farmacêuticas estrangeiras estão tentando burlar uma decisão do STF para estender suas patentes – ou seja, o tempo em que podem produzir um medicamento de forma exclusiva.

Gráfico: Intercept Brasil

O que é uma patente.


Patente é um título de propriedade temporária concedida pelo estado a quem desenvolveu uma nova invenção ou modelo de utilidade para determinado produto. O depósito do pedido de patente é feito no INPI e todas as informações estratégicas sobre o produto se tornam públicas logo nos períodos iniciais do processo de patenteamento. Contudo, ninguém pode usar esses dados, sob o risco de pagar altas indenizações quando a patente for definitivamente concedida à empresa que depositou o pedido.

Segundo Susana Ploeg, advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, o GTPI, o processo de aquisição de patentes de medicamentos não impede apenas a comercialização de determinado ativo. “Inviabiliza também qualquer tipo de desenvolvimento tecnológico e pesquisa científica”, ela disse.

O parágrafo que o STF considerou inconstitucional em 2021 impedia que o prazo de vigência de uma patente de invenção, que é o caso dos medicamentos, fosse inferior a 10 anos após sua concessão definitiva. Na prática, isso desconsiderava o tempo usufruído na análise do pedido. Assim, muitas vezes, a soma do prazo de vigência com o tempo de análise do pedido fazia com que o período de exploração exclusiva das farmacêuticas durasse mais do que 20 anos. O ministro Dias Toffoli, relator da ação no Supremo, destacou em seu voto que as big pharmas se aproveitavam dos privilégios já garantidos por lei no decorrer do processo, mesmo quando havia pouca probabilidade de a patente ser concedida no final.

De acordo com um relatório do Tribunal de Contas da União, citado no voto do ministro, era comum no Brasil “a concessão de patentes que, ao final, terão perseverado por 29 anos ou até mais”, devido ao que constava no parágrafo questionado. Toffoli ainda destacou que o trecho não estava nos projetos de lei que deram origem à LPI e foi inserido sem esclarecimentos sobre seus impactos.
Medicamentos até 80% mais baratos

Em maio de 2023, quando havia apenas 39 ações judiciais de farmacêuticas pedindo extensão de prazo de patentes, um estudo do Grupo Economia da Inovação, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estimou que o SUS poderia poupar de R$ 365,6 milhões a R$ 1,1 bilhão caso fossem negados todos os pedidos.

Os pesquisadores identificaram as compras de medicamentos originais com os princípios ativos discutidos nos 39 processos, feitas pelo ​​Departamento de Logística em Saúde do governo federal. A estimativa dos valores economizados considerou o cenário mais conservador e o mais drástico, em que genéricos ficam, respectivamente, 40% e 80% mais baratos devido ao fim das patentes.
SUS poderia poupar até R$ 1,1 bilhão se prazos de patentes não fossem estendidos.

O levantamento também estimou que os consumidores economizariam de R$ 694,9 milhões a R$ 7,6 bilhões com as compras dos medicamentos no mercado privado. De acordo com a pesquisa, isso seria possível “devido à ampliação da concorrência de mercado após o período regular de vigência de patente”, ou seja, limitado a 20 anos.

O fim de uma patente de remédio não garante apenas economia, como destacou Susana Ploeg. Para uma pessoa com HIV, isso poderia garantir acesso a um tratamento que ainda não está disponível no Brasil. É o caso do antiviral Edurant, patenteado pela Janssen. O medicamento não tem registro na Anvisa e, por isso, a farmacêutica não pode comercializá-lo no Brasil. Mesmo assim, as farmacêuticas nacionais também não podem trabalhar, investigar ou desenvolver pesquisas com o princípio ativo do remédio, a rilpivirina. Procurada, a Janssen informou que solicitou o registro sanitário e aguarda a análise da Anvisa.

A patente da farmacêutica para exploração exclusiva do princípio ativo do Edurant caiu em 2022, mas a farmacêutica entrou na justiça para estender o prazo até 2028. Um pedido de liminar foi negado pela 22ª Vara Federal Cível do Distrito Federal.

Procurada, a Janssen não respondeu às nossas perguntas.

De acordo com o levantamento do Grupo Farma Brasil, todos os processos sentenciados em segunda instância negaram o pedido de extensão de vigência das patentes. As liminares também estão sendo negadas na maioria dos casos – apenas 20% foram deferidas. Uma delas refere-se ao princípio ativo lenalidomida. Patenteado pela biofarmacêutica Celgene, que foi comparada pela Bristol Myers Squibb, ele é usado no medicamento de nome comercial Revlimid, um imunosupressor indicado para o tratamento de pacientes com mieloma múltiplo.

O preço de uma caixa do remédio com 21 comprimidos pode chegar a mais de R$ 30 mil atualmente. A patente do remédio caiu em abril de 2023, mas a empresa conseguiu uma liminar em primeira instância na 9ª Vara Federal do Distrito Federal para explorá-la por mais cinco anos. O caso segue na justiça. A Bristol informou, por meio da assessoria de imprensa, que não comenta casos sub judice.




A gigante farmacêutica Pfizer move ações na justiça que podem tornar os genéricos de ao menos três medicamentos uma realidade distante. Foto: Kevin David/A7 Press/Folhapress
Ações provocam insegurança jurídica

Na avaliação do Grupo Farma Brasil, é baixo o risco das grandes farmacêuticas conseguirem uma jurisprudência que torne a decisão do STF inútil. Mas a entidade reconhece que a demora natural dos processos judiciais já promove insegurança jurídica e prejudica a eficácia da decisão do Supremo. Além disso, as poucas medidas liminares vigentes a violam, ao prorrogar o fim do prazo das patentes, ainda que temporariamente.

Na análise de Ploeg, as ações em massa são uma estratégia para criar a necessidade de modificações na lei. “As farmacêuticas estão agindo dentro do Judiciário e dentro do Legislativo. São ações de lobby em conjunto”, acredita.

Renato Alencar Porto, presidente-executivo da Interfarma, entidade que reúne farmacêuticas estrangeiras, reconhece que as ações judiciais têm impacto na discussão pública a respeito das patentes. Segundo ele, a Interfarma participa de debates sobre o assunto no governo e em alguns projetos de lei, além de defender mudanças na LPI para prever compensação de prazos de patentes que sofram “atrasos injustificados no processo de análise do INPI”.

Segundo um relatório do Grupo Direito e Pobreza da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Brasil está em primeiro na lista dos seis países com os maiores tempos médios de vigência efetiva de patentes farmacêuticas. Somos seguidos por Suíça, Itália, Reino Unido, Estados Unidos e Suécia.

O ministro Toffoli destacou em seu voto os dados de um relatório do TCU que identificou as estratégias das farmacêuticas para maximizar o período de exclusividade na exploração de determinados produtos. Uma delas foi chamada de evergreening, que consiste no depósito sucessivo de pedidos de patentes derivadas de uma patente original.

Como os concorrentes ficam impedidos de trabalhar em um produto com pedido em análise, o privilégio do monopólio das grandes farmacêuticas está garantido. Mesmo que a patente não seja concedida, o domínio já existiu pelos anos em que o processo durou. “A lógica é a de que uma patente pendente é melhor do que nenhuma patente”, disse Toffoli.

Um exemplo é o caso do remédio anti-inflamatório e antirreumático com princípio ativo etanercepte, segundo maior entre os totais de compras do governo federal a partir de 2010, segundo o Ministério da Saúde. A Pfizer depositou no INPI 15 pedidos de patente do ativo desde 1999. Somados, eles poderiam garantir a proteção à farmacêutica por até 36 anos.

Em um comunicado, a Pfizer disse que o ajuste de prazo de patente é uma ferramenta válida e reconhecida em muitos países do mundo. “Um ambiente que estimule, respeite e proteja a propriedade intelectual é essencial para garantir o investimento em pesquisa e desenvolvimento para novos medicamentos e vacinas”, defendeu. Em uma segunda nota, enviada após a publicação desta reportagem, a farmacêutica afirmou que o medicamento Ibrance não está disponível no sistema público de saúde devido a pendências burocráticas de responsabilidade do SUS.

Depois da decisão do STF, segundo Ploeg, a estratégia de estender o período de análise no INPI mudou. Agora, as farmacêuticas querem limitar a dois anos esse tempo, chamando isso de eficiência. “Elas argumentam que, se a patente já foi concedida nos Estados Unidos, na Europa ou no Japão, não tem por que não ser concedida no Brasil. Na verdade, isso pode tirar a autonomia e soberania do INPI. O órgão passaria apenas a revalidar patentes já concedidas por outros países”, analisou Ploeg.

Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Atualização: 24 de agosto, 11h

Esta reportagem foi atualizada com informações enviadas pela assessoria da Pfizer após a publicação.

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