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Chimarrão: Saúde e Amizade...

O chimarrão é quase uma religião no Sul do país. Tão ligado ao gaúcho que, quando ele viaja, costuma chegar a uma nova cidade de mala e cuia, literalmente. O mate funciona como um ritual para dentro, da solidão, e, ao mesmo tempo, para fora, da solidariedade.





Natural enxergar na cidade de Porto Alegre gente solitária na varanda tomando mate, como quem fuma um cigarro e olha o movimento, ou nos parques, passando a cuia entre os amigos, como quem reparte bolachinha recheada. O músico regionalista Neto Fagundes avisa que isso hoje é uma cena comum. Nem sempre foi assim. A chaleira do campo foi substituída pela térmica, essencialmente urbana, a partir dos anos 70 e 80, com a invasão de jovens do interior para estudar e trabalhar na capital gaúcha. (O escritor Luis Fernando Veríssimo brinca em O Analista de Bagé, sucesso humorístico dos pampas, que o êxodo dos gaúchos iniciou após a invenção da térmica.) Estimula e tonifica.


Diurético, o chimarrão é um concorrente da cafeína.


Não se toma chimarrão e café simultaneamente. Um ou outro, alto lá! Se houvesse tarja no mate, estaria escrito atua como estimulante do coração e do sistema nervoso, elimina os estados depressivos e tonifica os músculos contra a fadiga e o cansaço. Não é apenas água e erva, tem complexo B, cálcio, magnésio, sódio, ferro e flúor. Alimenta mesmo, por mais verde e extraterrestre que seja. Na sangrenta Guerra do Paraguai (1864 a 1870), por exemplo, o general Francisco da Rocha Callado conta que o Exército brasileiro alimentou-se exclusivamente de chimarrão durante 22 dias. As pesquisas sobre o chimarrão estão iniciando seriamente agora. Revelam que a bebida tem antioxidantes, também presentes no badalado chá verde (chinês), e que produz um leve efeito contra a coagulação no sangue, como a aspirina, diz o cardiologista Fernando Lucchese.

É compreendido ainda como antídoto do excesso de carne. De acordo com o psicanalista Mário Corso, responde como meio mais eficaz para hidratar e equilibrar o gaúcho, flor de carnívoro, que costuma se atolar nos espetos corridos.

Espécie de chá manso, como define o escritor Luís Augusto Fischer. Propício tanto à reflexão como à roda de amigos. Suas ferramentas são simples, constituídas de cuia (a cabeça do porongo decapitado) e bomba (de prata é a melhor; várias famílias gaúchas têm a peça com bocal de ouro, uma jóia que fica curiosamente na gaveta dos talheres). Retirada da erveira, planta que atinge a altura de 6 a 8 metros e similar a uma laranjeira, a erva-mate cobre dois terços da cuia. Botando menos, é mate comprido. Botando mais, é mate curto. A água a ser posta deve estar quente, não fervida, pois pode queimar a erva e infundir gosto infeliz de pneu queimado. Lição que o francês viajante Saint Hilare, em sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1820, absorveu: A cuia tem capacidade de mais ou menos um copo, é cheia com erva até a metade, completando-se o resto com água quente. Quando o mate é de boa qualidade, pode-se escaldá-lo até dez ou 12 vezes sem renovar a erva.


Velho de guerra


Deu para perceber a antiguidade do chimarrão. Sua utilização é pré-colombiana, foi alimento básico dos índios guaranis, teve o desenvolvimento de sua cultura pelos jesuítas da Companhia de Jesus, que transformaram a erva em comércio e exportação de 1610 a 1768. Chegou a servir como pagamento, o que fez significar cheio de erva como cheio de grana.



Aos observadores incrédulos, deve-se concluir que não há mistério, é beber e pronto. Ledo engano. O chimarrão é um tabuleiro, com regras, educação e simpatias. Convide os colegas para jogar. O que errar está desclassificado. Não se pede um mate, o mate é oferecido. Uma forma de converter um estranho em amigo. É uma deferência e sinal de respeito.  A roda de chimarrão evoca o moinho de vento, ponto de encontro para perguntar ao interlocutor quem ele é, de onde vem, o que quer, quando vai?



Cuidado: não se entrega o mate ou se recebe com a mão esquerda. Ao se enganar, diga: Desculpe a mão! Só o cevador (o preparador do mate) tem a licença para arrumar e mexer na erva. Não adianta fuçar a bomba ou ajeitála por conta própria, mesmo que o chimarrão esteja entupido e não saia nada mais que ar. Devolva ao dono que ele arruma. O primeiro a tomar é também sempre o que fez. Para mostrar que está bom e, de modo nenhum, envenenado (risos). O segundo mate partirá para o mais velho ou alguém a se prestar uma homenagem. A cuia segue no sentido anti-horário, do lado direito (o lado do laçar) em diante, de volta ao cevador. Perderá pontos, isso é importante, se você não roncar a cuia. É preciso tomar a água até o final, senão é descortesia. Não agradeça na hipótese de continuar na roda. É entendido como uma despedida ou pior um jeito polido de dizer que o mate não estava agradável, provavelmente frio e com a erva lavada. Não obstrua o ritmo do círculo, ficando com a cuia à maneira de um copo vazio à espera do garçom.



Nem tudo é flor de erva. Em Fatos e Mitos sobre sua Saúde, o cardiologista Fernando Lucchese sugere a quebra de um dos mais sagrados mandamentos da cultura gaudéria em nome da higiene e prevenção. Sua observação se refere à mania da cuia de circular de boca em boca. Seria preciso lavar o bocal com a própria água quente. Basta um participante ter herpes labial, que transmitirá aos demais.



Conforme Lucchese, o chimarrão pode causar gastrite e esofagite, pela composição da erva ácida e água quente. Está relacionado ao câncer de lábio, esôfago e de língua. Na década de 70, cidades fronteiriças do Rio Grande do Sul mostraram alta incidência desses casos em comparação às taxas do país. A garrafa térmica novamente ela! diminuiu os riscos.





Além do ritual se prestar para rodadas animadas de papo, fofocas e conversas postas em dia, é um ato de reflexão e um mergulho na serenidade. Nenhum demérito preparar o mate sozinho. Pelo contrário, o verdadeiro mateador é o que não depende de estímulos externos e visitas. É uma hora para botar as idéias no lugar, refletir sobre o que foi feito no dia anterior, fazer a pauta do dia que se descortina, uma hora para pensar calmamente, para ter aquela paz sem a qual não entendemos as coisas nem criamos nada, avalia Corso.


Tradição passional, o chimarrão é como uma prova de iniciação, de batismo de fogo aos interessados em ingressar na cultura gaúcha ou recuperar espaços dentro de si. Atividade dos extremos, à semelhança de um Grenal (Grêmio versus Inter), está carregada de exageros e superstições. Os que não partilham o costume sentem uma ponta de culpa e se penalizam. Um exemplo é o escritor Luis Fernando Veríssimo. No alto de sua reputação unânime, confessa: Acredite ou não, não sei que gosto tem chimarrão. Concordo, eu deveria ser expulso do estado.

Como preparar o Chimarrão - Por Luís Augusto Fischer


A receita é simplíssima, mas requer alguma habilidade manual, coisa que só a prática dá: a água tem que estar quente, mas não fervida (desligue a chaleira quando ela começar a chiar, não depois por isso é que chaleiras de aço não prestam para o bom preparo). Aí é assim:

- Enquanto a água esquenta, eu molho a cuia por dentro, para aquecê-la.

- Boto a erva, com a cuia meio de lado (mais ou menos a metade do volume interno da cuia)

- Com a erva por assim dizer encostada em um dos lados da cuia, bota-se a água (que ainda não está nem no ponto de fazer a chaleira chiar, bem entendido), para firmar o morrinho.

- Deixo assim, encostada, enquanto a chaleira termina de aquecer, até chiar.

- Mistério principal: colocar a bomba. Para mim, isso se faz quando a água posta para firmar o morrinho já foi absorvida pela erva, de forma que a bomba entra a seco (mas há quem a coloque com a água ainda ali); arrumo o morrinho com o bulbo da bomba e está pronto. Por mitologia, mais do que por ciência, eu tapo a boca da bomba para fazer essa operação toda.
Para saber mais

Livros:
Cevando Mate, Glênio Fagundes, Rígel



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