A explosão do depósito da Fulgor,
que armazenava grande quantidade de fogos de artifício, seguida de uma ‘nuvem cogumelo’ e uma forte onda de ar, espalhou destruição por vários quilômetros da zona norte da cidade. Sem flagrantes em vídeo como ocorreu no Líbano neste mês, a ‘tragédia do 4º Distrito’ é lembrada por quem viveu de perto o horror daquele 3 de maio de 1971.
Na semana em que o mundo assistiu perplexo às cenas de centenas de vídeos amadores com o incrível flagrante da explosão que devastou a região portuária de Beirute, no Líbano, muitos porto-alegrenses relembraram um desastre bem menos registrado em imagens – muito menos em vídeo –, mas igualmente impactante na memória de quem viu com os próprios olhos aquela sequência de acontecimentos.
Era o início da década de 1970. A cidade estava repleta de canteiros de obras, reflexos dos vultosos planos de mobilidade do governo de Telmo Thompson Flores. Nos jornais, não poucas eram as expressões como “grande cidade em desenvolvimento” ou “metrópole que não para de crescer”. Mas, em 3 de maio de 1971, Porto Alegre parou. Nos relatos registrados em dezenas de páginas dos veículos do Grupo Caldas Júnior – Correio do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde –, detalhes de uma catástrofe de dimensões até então não vivenciada pelos pouco mais de 900 mil moradores da Capital à época.
Capas dos jornais Correio do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde de 4 de maio de 1971. Nas páginas dos periódicos, detalhes da tragédia que se abateu sobre a cidade, ilustrados por fortes imagens da equipe de fotógrafos. Testemunhas relataram o espanto e o medo com a força da explosão | Reprodução / CP Memória
Eram 15h34min daquela segunda-feira. O céu estava limpo durante a tarde ensolarada, mas fazia frio. Um avião turboélice passava rasante sobre o bairro Navegantes, na Zona Norte da cidade, fazendo a aproximação para pousar no Aeroporto Salgado Filho. O fato comum não despertou a atenção especial de nenhum morador. Todos estavam acostumados com o voo baixo de aviões na região. A aeronave sobrevoava as proximidades da Ponte do Guaíba quando um barulho de explosão se ouviu no bairro. Mais alguns segundos e uma segunda explosão, desta vez muito mais forte. O estrondo ecoou por toda a cidade. Nos instantes que se seguiram, uma nuvem em formato de cogumelo se formou no céu da capital gaúcha precedendo uma forte onda de ar que, em segundos, destruiu janelas e causou estragos em um raio de até dois quilômetros de distância. Logo após a densa nuvem de poeira se dissipar, o que se viu foi um cenário de guerra. E a certeza de que a tragédia em nada tinha relação com o turboélice, que pousara em segurança no Salgado Filho.
A coincidência com o voo fez crer até mesmo ao Corpo de Bombeiros que uma tragédia aérea teria se abatido sobre a cidade. Ao chegarem ao local, contudo, viram o ineditismo da situação. O depósito da empresa Fulgor, localizado no número 150 da rua Doutor João Inácio e com grande quantidade de fogos de artifício, explodiu, levando consigo 56 edificações, entre casas e prédios, 24 veículos e oito vidas. O rastro de destruição se estendeu por muitos quarteirões. Dezenas de edificações a quilômetros de distância do local da explosão foram danificadas e os feridos chegaram a 59. O barulho da explosão pôde ser ouvido até mesmo por moradores de cidades como Esteio e Canoas. A violência com que tudo foi aos ares gerou grande comoção na cidade e está guardada na memória de quem viveu aquele dia, há 49 anos.
Destruição se espalhou por vários quarteirões do 4º Distrito, nas proximidades da Ponte do Guaíba | Foto: CP Memória
Vergilino de Freitas Machado é um deles. Natural de Sombrio, em Santa Catarina, chegou ainda jovem ao solo gaúcho em busca de uma vaga no Exército. “Tinha 18 anos e passei em todos os testes. Na época, morava em Cachoeirinha e quando fui me alistar em Porto Alegre acabei dispensado por morar em município não tributário”, se recorda. Sem tempo para lamentar, foi em busca de um emprego para se sustentar e conseguiu uma oportunidade na Rádio Mecânica Ltda. Ele tinha disposição para o trabalho e foi colocado para operar a guilhotina, estampando peças que eram revendidas para a Teleunião S.A., empresa que por décadas era referência na fabricação de rádios e televisores. A oficina da Teleunião ficava localizada na altura do número 3.811 da avenida Voluntários da Pátria. Já a Rádio Mecânica, para manter a agilidade na entrega, instalou-se no terreno dos fundos, com entrada pela João Inácio. Quase em frente ao portão, do outro lado da rua, ficava o depósito da distribuidora Fulgor.
“O momento da explosão foi uma coisa terrível. Ninguém soube entender o que estava acontecendo. As pessoas saíram correndo para todos os lados”, conta Vergilino, hoje com 69 anos. De fato, foram minutos de muita confusão, desespero e medo. A causa exata do acidente nunca foi elucidada. Especulou-se que um caminhão teria passado pela rua e atingido os fios de luz, gerando um curto-circuito na rede. Seja qual for o motivo, deve ter sido consumido na própria calamidade que gerou. Ficaram apenas entulhos e ferros retorcidos espalhados pelo quarteirão. “Lembro de ver folhas de zinco por todos os cantos”, lembra Vergilino. Ele estava trabalhando naquela tarde. Com o impacto, foi jogado em direção a uma das duas guilhotinas que operava. Imaginando que o sinistro ocorrera no prédio em que estava, correu em direção à rua. “Assim que saí da empresa, fui atingido na região da bacia por um tijolo que caiu do prédio.” Machucado, deitou-se no chão e tentou se proteger embaixo de uma árvore. Ao recuperar o fôlego e ainda ouvindo o barulho das explosões que se seguiam, em razão dos fogos de artifício ali armazenados, foi caminhando com dificuldade até à beira do Guaíba. De lá, foi levado para o hospital.
Em uma época em que o telefone fixo não era acessível e tampouco existiam celulares nos bolsos dos moradores, a busca por informações estava concentrada nos meios de comunicação. Com os ouvidos na Rádio Guaíba, os familiares aguardavam por notícias de quem, assim como Vergilino, trabalhava na região no bairro Navegantes. A angústia só terminava quando eles chegavam a suas casas. Foi o que aconteceu, já tarde naquela mesma noite, na casa de Vergilino. A rápida alta médica não foi sinônimo de pronta recuperação. Ele ficou uma semana de cama e outras três afastado das atividades. Na volta ao trabalho, acabou pedindo demissão e resolveu retornar para Santa Catarina, junto aos pais.
Brutalidade da explosão
Foto: CP Memória
De propriedade de Clemente Dias Andrade, a Fulgor tinha licença para funcionar como uma distribuidora. Revendia, no atacado, chapéus e sapatilhas. Com a proximidade das festas juninas, contudo, Clemente passou a revender fogos de artifício, uma autorização que a fiscalização da prefeitura à época garantiu nunca ter dado. Ele tinha comprado a empresa cinco meses antes. Para atender as vendas que julgava crescer durante o mês de maio, ampliou a fábrica para armazenar grande quantidade dos foguetes festivos. Vizinhos disseram ter ouvido do próprio Clemente que o depósito abrigava 300 mil cruzeiros em mercadorias. A legislação da época previa que, em se autorizando a comercialização deste tipo de material, o local poderia armazenar estoque para apenas 15 dias de venda, de acordo com uma média de movimento diário. De fato não foi o que ocorreu e os planos de expansão acabaram em tragédia, como se viu.
Na manhã daquele dia 3, um dos 20 representantes comerciais da Fulgor carregou uma Kombi com grande quantidade de fogos de artifício. Ao meio-dia, partiu rumo ao interior do Estado, onde faria a entrega da mercadoria. Salvou-se da tragédia que tomou conhecimento ouvindo a Rádio Guaíba, já na estrada. Deu meia volta e deslocou-se para o depósito da empresa, que àquela altura já tinha desaparecido do mapa. Igual sorte não teve Angelo Guido Biazetto. Também vendedor da empresa, chegou por volta das 15h no depósito para carregar seu DKW com a mercadoria que pretendia entregar. Pior. Decidira levar consigo o filho, Angelo Luiz, no fatídico dia. Com 10 anos de idade, o pequeno não entrou no depósito, mas permaneceu na calçada logo em frente, brincando. Quando tudo foi pelos ares, Clemente e Angelo Guido estavam no interior da empresa com outros dois funcionários: Léo Silfredo Kempler, que era responsável pelo estoque da empresa e que foi contratado poucos dias antes, e Ubirajara Leandro. Dos cinco, incluindo o menino, batizado com o mesmo nome do pai, apenas Ubirajara sobreviveu. Os demais morreram de forma trágica.
Uma parte do corpo de Clemente foi localizado a dezenas de metros de distância. O reconhecimento só foi possível a partir da aliança que utilizava na mão esquerda. O menino foi encontrado sem vida dentro do DKW, arremessado a dez metros de distância contra a parede do depósito de móveis da Incosul. O que restou do corpo do pai precisou de quatro dias para ser localizado. Ele estava no interior do depósito da Imcosul, embaixo de uma pia. Já Léo Kempler foi a última vítima, de um total de oito, a ser identificada, quase uma semana após a explosão, tamanha a dificuldade resultante das características da explosão. A brutalidade do acidente levou as autoridades a desconfiarem que no local também era armazenada alguma quantidade de pólvora, o que também era ilegal. Segundo os relatos das testemunhas, após as duas explosões, o que se viu foram grandes labaredas de fogo, seguidas de estouros menores.
Nuvem de fumaça foi vista por toda cidade, a quilômetros de distância do local da explosão | Foto: CP Memória
A nuvem em formato de cogumelo, característica de explosões atômicas e também marcante na tragédia ocorrida neste mês no Líbano, chama-se, na verdade, pirocúmulo. Ela surge em qualquer grande explosão que ocorra no solo, produzindo gás quente que sobe rapidamente pela atmosfera terrestre. Enquanto isso, o ar frio que está acima entra em confronto com esse gás e, sendo mais denso, empurra-o com bastante força para baixo, dando o formato de cogumelo. O fenômeno é chamado de instabilidade de Rayleigh-Taylor, que descreve a interação entre dois materiais (fluidos ou gases) de densidades diferentes quando são forçados a se unir.
O episódio registrado em Porto Alegre em 1971, apesar de nenhum registro em imagem do momento exato da explosão, se assemelha ao ocorrido em Beirute agora em 2020, resguardadas as proporções, certamente. Também naquela ocasião, há 49 anos, testemunhas relataram a formação de uma forte onda de ar que, em segundos, chacoalhou tudo o que encontrou em um raio de pouco mais de dois quilômetros. Dezenas de prédios tiveram os vidros estilhaçados, entre eles a 4ª Delegacia da Polícia, localizada a vários quarteirões do local da tragédia. Edificações na Avenida Farrapos também apresentaram danos. O tremor pode ser sentido na sede do Banrisul, no Centro, na época um dos edifícios mais altos da cidade. Na Ponte do Guaíba, um homem chegou a ser arremessado, com a força do impacto, a metros de distância. O mesmo ocorreu no prédio da transportadora Javali, também a algumas centenas de metros da Fulgor, no sentido oposto ao da ponte. Ali estava Geraldo Smani que, ao jornal Folha da Manhã, não teve receio de relatar que foi jogado longe “mesmo com seus 114 quilos”. Ele teve apenas ferimentos leves.
Resgate dramático
Foto: Vitor Teixeira / CP Memória
A primeira equipe de resgate chegou ao local da explosão 20 minutos após tudo ir aos ares. Com a constatação do tamanho da tragédia, foram acionados reforços e deslocaram-se para a região quase todos os recursos da Polícia Civil e Brigada Militar. Todas as viaturas da Divisão de Investigações e dos distritos policiais foram para a Voluntários da Pátria. Da Polícia do Exército, 60 soldados foram destacados para a ação, além de outros 30 da Companhia do Quartel General da 6ª Divisão de Infantaria.
Além da busca por feridos, havia inúmeros outros pontos de incêndio, deflagrados tanto pela explosão principal quanto pelos restos de fogos de artifício, àquela altura já por todo o quarteirão. Dez caminhões do Corpo de Bombeiros e uma Lancha Bomba chegaram ao local para lançar sobre os destroços mais de 65 mil litros de água. Ao todo, 80 homens da corporação atuaram diretamente na ocorrência e um deles acabou ferido após uma explosão secundária de um dos foguetes espalhados.
Os primeiros feridos eram levados em viaturas da polícia para o Hospital de Pronto Socorro. Ao longo daquela tarde, 59 pessoas deram entrada na emergência, 14 delas em estado grave. Tão logo as vítimas começaram a chegar e as notícias na rádio se espalhavam, uma imensa fila de pessoas dispostas a doar sangue se formou em frente ao HPS. Para lá também foram médicos particulares, com a intenção de auxiliar no atendimento. A movimentação no local foi tamanha que, pela noite, a direção da instituição informou que não se faziam mais necessárias as doações.
Vítimas foram levadas para o Hospital de Pronto Socorro em veículos particulares e viaturas da polícia. Ao todo, 59 pessoas ficaram feridas, 14 delas com gravidade | Foto: CP Memória
Enquanto isso, no local do acidente, voluntários se somaram ao trabalho dos resgatistas em buscas de possíveis sobreviventes sob os escombros. E um milagre se fez em meio ao caos. Por volta das 17h, enquanto vasculhava a área de uma das casas destruídas, o sargento Iberão Dorneles Aquino, do Corpo de Bombeiros, ouviu o choro que parecia ser de uma criança. Imediatamente começou a revirar com as próprias mãos os entulhos e, com o choro cada vez mais nítido, acionou os demais colegas. Começou ali um esforço hercúleo para tentar o resgate. A pequena Márcia Rosa Lopes, de 7 anos, estava presa debaixo de uma laje que fazia parte da casa número 142 da Doutor João Inácio. Foram 30 minutos de angústia. A cada tentativa de retirar os escombros, ampliavam-se as possibilidades de tudo ruir. O sargento conseguiu então se posicionar entre a menina e a laje para retirá-la com vida. Obteve sucesso e, constatando o êxito, postou-se a chorar já abraçado pelos demais colegas de farda. Márcia estava consciente. Chorava assustada com toda a sequência de acontecimentos. Apenas com ferimentos leves, foi atendida por um médico socorrista e encaminhada ao HPS de ambulância.
O pai da menina, João Rosa Lopes, era viajante e não estava em casa no momento do acidente. Chegou ao local pouco antes de Márcia ser localizada. Atônito com as ruínas que em se transformou o lar, precisou ser atendido pelos médicos. Na sua residência estavam, além da filha, sua esposa, Teresa Rosa Lopes, de 35 anos, e sua mãe, Elza Rosa Lopes, de 77 anos. João foi primeiramente informado que a mulher já estava no HPS em atendimento. O resgate da filha pôde acompanhar instantes depois. A alegria de ter presenciado o pequeno milagre foi abalada quatro dias depois. Teresa não resistiu aos ferimentos e morreu no Hospital Cristo Redentor, para onde foi transferida no dia 5. Um dia após o enterro da esposa, soube da localização dos restos mortais da mãe, dona Elza.
Pânico na escola
Foto: CP Memória
Nas proximidades da área atingida pela explosão havia duas instituições de ensino. A Escola Estadual Normal 1º de Maio, localizada no número 149 da avenida Presidente Franklin Roosevelt, era distante 400 metros do local do acidente. Já o Colégio Estadual Cândido José de Godói, na avenida França, era ainda mais perto, a cerca de 200 metros. Ambas ainda existem e atendem alunos do bairro Navegantes. Na época, contudo, o Godói possuía apenas alunas mulheres. Uma delas era Irene Szyszka, descendente de poloneses como muitos no bairro. Hoje, 49 anos depois, recorda-se com riqueza de detalhes daquela segunda-feira.
“O prédio da escola estava em obras. Estavam construindo um segundo piso. Nós, que estudávamos no térreo, ouvíamos sempre o barulho da construção em cima. Estávamos muito acostumados a ter aula e ouvir aquele barulho”, conta, ao citar que o som dos aviões se aproximando do Salgado Filho também fazia parte do cotidiano dos moradores. “Quando ocorreu a explosão, minha turma estava tendo uma aula de Português. A professora chamava-se Eloisa. Começou aquele barulho como se fosse o da obra e…. bum! Olhei para a professora, que arregalou os olhos e correu para uma das janelas na tentativa de sair da sala. Todo mundo se levantou e correu em direção à porta, que era estreita. Quando saímos no corredor já havia muita gente correndo. Parecia uma boiada. No meio da multidão, a minha impressão era que estava caindo o prédio da escola. Correndo pelo corredor, chegou uma parte em que conseguíamos enxergar o pátio, o que não era possível em frente à sala devido a uma construção que encobria a vista. Quando eu tive a visão do pátio, enxerguei aquela bola de fogo. Me lembrei dos filmes de guerra. Aquele cogumelo da bomba atômica. Pensei, então, que tivesse caído um avião naquele local. Que ele estaria pousando e caiu. Não era o prédio do colégio, era um avião... Depois pensei que poderia ser uma bomba. Meu Deus, alguém jogou uma bomba! A gente não sabia o que estava acontecendo e saiu correndo com aquele povo todo em direção à frente da escola.”
Os detalhes descritos por Irene revelam marcas de uma experiência que impactou sua infância. Na correria para deixar a escola, ela caiu no chão e chegou a ser pisoteada. “Usávamos um sapato colegial, com um saltinho. Lembro que ficamos em frente ao colégio olhando aquela fumaça, aquele fogo, sem saber o que estava acontecendo. Também me recordo de ter encontrado uma outra professora que estava grávida. Ela também saiu correndo com aquela ‘boiada’, mas estava bem”, detalha.
“Depois dispersamos, nos liberaram para ir para casa. Eu tive que caminhar com o salto quebrado até a São Pedro com a Farrapos – a pouco mais de 1 km de distância –, para poder pegar o ônibus e voltar para a minha casa, no Sarandi. Quando cheguei, meu avô, que morava ao lado, disse ter ouvido a explosão. Ele acompanhou pelo rádio o que tinha acontecido.” As aulas no Godói foram suspensas por dez dias, mas os traumas de Irene duraram bem mais. “O Sarandi, onde morava, também era rota para o aeroporto. Passava avião sempre, inclusive de madrugada. Eu me acordava de noite muitas vezes com aquele barulho, me sentava na cama e ficava esperando… ‘vai cair, vai cair, vai cair’... aí o avião passava, eu deitava e voltava a dormir”, revela.
O quadrilátero formado pelas avenidas Voluntários da Pátria, Franklin Roosevelt, Cairú e Comendador Tavares ficou isolado durante três dias. Nem mesmo os moradores da região puderam entrar na área, considerada insegura em razão dos fogos de artifício que não haviam explodido no sinistro. Irene se recorda das colegas que moravam próximo da escola e ficaram abrigadas na casa de familiares. O retorno das aulas não trouxe a volta da normalidade à região. “O muro da quadra em que tínhamos as aulas de ginástica ficava quase na João Inácio. A gente tinha medo de ir ali jogar vôlei. Lembro o professor dizendo: ‘Coragem, gurias!’.”
Restos mortais ficaram espalhados por vários quarteirões na região | Foto: Carlos Rodrigues / CP Memória
O receio das jovens era justificável. A violência com que tudo foi aos ares espalhou restos mortais por vários quarteirões. Mesmo após as buscas nos escombros, nos dias que se seguiram foram localizados uma costela e um dedo em um prédio da mesma rua, um pedaço de joelho em outra estrutura, um pé na Ponte do Guaíba, um fígado na avenida Sertório e até uma cabeça no telhado da antiga fábrica da Neugebauer, localizada em frente ao colégio Cândido Godói. Mesmo depois de semanas do acidente, populares continuavam localizando partes. O próprio Instituto Médico Legal alegou grande dificuldade em identificar as vítimas em virtude das condições dos corpos. “Ficamos muito tempo assustadas com aquele episódio. A quadra da escola tinha um matagal e tínhamos muito medo de encontrar algo ali”, lembra Irene.
As memórias daquela época voltaram à mente dela nestes últimos dias, ao assistir aos vídeos com os flagrantes da megaexplosão ocorrida na região portuária de Beirute. “Na mesma hora me lembrei. Quando vi a primeira imagem, ainda com aquela fumaça e a sequência da explosão... Claro que lá foi em proporções muito maiores, mas me lembrei imediatamente. Lembrei exatamente aquele dia, aquela hora, o que estávamos fazendo. Quando tudo estremeceu, aquela bola de fogo. Igual ao que vivi, mas em proporções menores. A gente nunca vai esquecer daquilo. Ficou tão marcado que contando agora estou sentindo as coisas.”
Tesouro perdido
Foto: Alberto Etchart / CP Memória
Nos dias que se seguiram à tragédia, a cidade se voltou para a região do 4º Distrito, que passou a receber, além da atenção das autoridades, a curiosidade de populares. O interesse aumentou quando um representante comercial da Fulgor foi à polícia avisar que, sob os escombros, estaria um cofre da empresa com 20 mil cruzeiros dentro. A história logo ganhou as manchetes dos jornais e passou a ser o assunto do momento. Foi preciso aumentar o policiamento. Os saques nas casas parcialmente destruídas se proliferaram. Sofás, camas, televisores, rádios, eletrodomésticos, quase nada escapou da sanha dos aproveitadores. O problema foi ampliado quando a prefeitura levantou a interdição do local. Não poucas foram as críticas pelo serviço de buscas ter sido encerrado sem que todas as vítimas fossem localizadas.
No final daquela semana, moradores que tentavam salvar objetos pessoais encontraram o cofre da Fulgor. Frustrando a expectativa da maioria, ele havia estourado e o suposto dinheiro fora consumido pelo incêndio. O fim do mistério não diminuiu o interesse dos curiosos e a região se tornou uma infeliz “atração turística” da cidade, reunindo centenas de pessoas aos finais de semana. Até mesmo estacionar nas ruas próximas era difícil, tamanho o movimento. Não demorou para chegarem ambulantes, vendendo petiscos e bebidas. Famílias inteiras chegavam para olhar os destroços e, morbidamente, tentar localizar algum pedaço de corpo humano.
Arroz impediu tragédia maior
Foto: Edemar Machado / CP Memória
Apesar do saldo trágico, uma circunstância que também se assemelha ao episódio no Líbano impediu que o número de mortos fosse ainda maior em Porto Alegre. Uma enorme pilha de grãos serviu como escudo para segurar o impacto da explosão. Ao lado da Fulgor ficava a sede da Arrozeira Brasileira S.A.. A companhia tinha 17 mil metros quadrados de área construída naquele quarteirão e, na ocasião, possuía 500 mil sacos de arroz estocados em cinco depósitos. Quatro deles foram danificados, além do prédio de três pavimentos que abrigava os escritórios da empresa.
Pouco antes do acidente, 230 operários estavam lanchando em um pavilhão cuja parede fazia divisa com a distribuidora. Ao retornarem ao trabalho, salvaram-se da tragédia. A estrutura cedeu e transformou em ruínas o refeitório. Apenas um funcionário da Arrozeira morreu: José Larronda, de 31 anos. Seu corpo foi arremessado para o telhado de um dos depósitos, vindo a cair logo em seguida. Ele foi a primeira vítima a ser retirada do local.
Nos dias que se seguiram os funcionários da companhia se empenharam em limpar a área e recolher as toneladas de grãos que ficaram espalhados. Foi preciso implementar um esquema de trânsito especial pela prefeitura para organizar o fluxo de caminhões.
Lições
A facilidade com que se comercializava materiais inflamáveis, apesar de existir legislação restritiva, lançou dúvidas sobre a capacidade de fiscalização das autoridades. A proximidade de residências, armazéns e empresas passou a ser questionada. Comissões da Câmara de Vereadores e da Assembleia Legislativa foram formadas para acompanhar os trabalhos de resgate e atendimento aos desabrigados. Uma indenização chegou a ser especulada, mas fora descartada pelo prefeito.
Em Brasília, o deputado Brasílio Caiado (Arena-GO) chegou a apresentar projeto de lei que proibia a fabricação, comercialização e o uso de fogos de artifícios em todo o país. O rigor não avançou, mas, em 1975, o Congresso determinou valores de multas para quem infringisse as regras, além de possibilidade de prisão. Dois anos depois foi imposta a restrição do uso de foguetes por menores de 16 anos, limite de idade até então inexistente.
À esquerda, gráfico publicado na Folha da Manhã em 4 de maio de 1971 e ao lado imagem de satélite da região atualmente.
A: Local onde ficava a Rádio Mecânica, onde trabalhava Vergilino Machado | B: Área da Arrozeira Brasileira S.A. | C: Depósito da Fulgor | D: Depósito da empresa Imcosul | E: Colégio Estadual Cândido José de Godói | F: Avenida Voluntários da Pátria | G: Local onde funcionava a Fulgor, hoje um motel e uma danceteria | H: Antiga fábrica da Neugebauer | I: Colégio Estadual Cândido José de Godói | J: Escola Estadual Normal 1º de Maio | K: Avenida Farrapos
À esquerda, local onde estava o depósito da Fulgor, destruído. O prédio de alvenaria sumiu do mapa, deixando apenas as estruturas da Arrozeira Brasileira S.A. em pé. À direita, as ruínas de prédios atingidos pela explosão ainda resistem no interior do quarteirão da rua Doutor João Inácio, gora circundado por novos prédios e galpões | Fotos de Alberto Etchart / CP Memória e Mauro Schaefer
As vítimas
Clemente Dias Andrade, 33 anos. Proprietário da Distribuidora Fulgor. Estava no interior da empresa quando houve a explosão. Devido à gravidade das lesões que sofreu, teve o corpo reconhecido pela aliança que utilizava.
Léo Silfredo Kempler, 17 anos. Funcionário recém-contratado da Fulgor para trabalhar no estoque da empresa. Estava dentro do depósito, junto com o patrão, Clemente, no momento do acidente. Partes de seu corpo foram localizados quatro dias. Foi a última vítima a ser identificada.
Angelo Guido Biazetto. Representante comercial da Fulgor. Carregava seu DKW com fogos de artifício que seriam transportados do depósito no momento do acidente.
Angelo Luiz Biazetto, 10 anos. Filho de Angelo Guido, acompanhava o pai e estava brincando em frente ao depósito no momento da explosão.
José Larronda, 31 anos. Lavador de máquinas. Estava no interior do prédio da Arrozeira Brasileira quando foi atingido por uma parede que desmoronou.
Angelino Andreotti, 32 anos. Marceneiro. Trabalhava no depósito de móveis da Incosul, localizado em frente à Fulgor.
Elsa Rosa Lopes, 77 anos. Aposentada. Era avó de Márcia, resgatada com vida dos escombros da casa onde moravam, na rua João Inácio.
Teresa Rosa Lopes, 35 anos. Dona de casa. Mãe de Márcia e nora de Elsa Rosa. Foi resgatada com vida e levada para o HPS em estado grave. No dia 5 de maio precisou ser transferida para o Hospital Cristo Redentor, onde morreu dois dias depois.
Desaparecida
Elza Borges, 19 anos. Morava com o irmão, Edson Borges, de 20 anos, em uma pequena peça localizada nos fundos da Distribuidora Fulgor. Ambos estavam na cidade há menos de um mês. Naturais de São Paulo, chegaram a Porto Alegre tentando recomeçar a vida. Em dezembro de 1970, a casa onde moravam, no km 23 da rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo, foi consumida pelo fogo. O sinistro começou nos pavilhões da Volkswagen, após uma fagulha gerada por um equipamento de solda atingir o material da tapeçaria e alastrar-se para um tambor de solvente. A soma dos infortúnios gerou um incêndio de grandes proporções que precisou de dois dias para ser completamente debelado. Além da perda material, uma tragédia ainda maior se abateu sobre a família Borges: os pais e três irmãos morreram queimados naquela ocasião.
Quatro meses depois, já na capital gaúcha, Edson conseguiu um trabalho em uma construtora. O pouco salário era suficiente para sustentar ele e a irmã. Saiu de casa na manhã daquele dia 3 de maio com a marmita que Elza havia lhe preparado e despediu-se dela com um beijo. Nunca mais a viu. O nome da jovem figurou na lista de desaparecidos por dias. A relação, que chegou a ter quatro procurados, limitou-se, no fim, apenas a seu nome. Os demais acabaram localizados em outros pontos da cidade, em circunstâncias que os livraram de estar na rua doutor João Inácio naquele momento.
As buscas foram encerradas no local uma semana após a explosão, após incessante trabalho do Corpo de Bombeiros e, nos dias que se seguiram, por funcionários da prefeitura. Pedaços de corpos ainda continuaram sendo localizados por populares nas semanas seguintes em diferentes pontos do quarteirão, mas em estado de conservação inviável para uma identificação.
Veja as imagens:
CP Memória.
Reportagem:
Jornal Correio do Povo.